Um Conto de Terror
Por Déia Tuam
Noite quente. Não há nada para se iniciar um encontro visceral noturno como as ondas lambendo os pés de um marinheiro cansado. Creta. Ano 1.700.
Ele finalmente entendeu que gostava muito de água. Quanto a esse elemento, os psicanalistas de hoje discorreriam convictos sobre sua sincera intenção de retornar ao conforto do útero materno.
Ele achava prático lavar as mãos com rapidez.
Depois de desenhar letras de nomes falsos pensados na hora sobre a areia. Sangue.
E ele mesmo discorreria sobre seu maior gosto na vida, se ele pudesse falar, mas estava ele muito concentrado, vividamente voltado para sua voluptuosa obra naquela praia cretense. A Música da luta contra os rochedos abafava qualquer gemido de seus convidados.
Ele colaborava para o domínio marítimo de Creta, com seus entrepostos comerciais em todo o mar Egeu, e ele se aproveitava disso, sumindo de casa logo se tornou um marujo.
Em cada porto, um cadáver sem alguma víscera. Certamente algum animal, mas qual?
Melhor se houvessem crianças. Para vê-lo em ação. Havia um motivo para que ele nunca tivesse tocado em uma criança. Ele gostava de saborear a idéia das possibilidades, o que elas fariam se chegassem a crescer, lhe seguiriam o bom gosto?
E o melhor tempero era o fato de que ninguém queria procurar, ninguém queria admitir, ninguém queria achá-lo. Naquele dia no mercado, por entre cidônios, cretenses, fenícios e pelasgos, ele nada ouvia e já tinha passado por muitos comentários nos portos e era diariamente tranqüilizado pela doce inércia investigativa das cidades.
Os sociólogos da atualidade falariam alguma coisa sobre impunidade, mas seus segundos de fama seriam bem curtos para algum debate mais profundo.
Naquela noite, um homem velho, com a aparência o mais saudável possível.
Algumas noites atrás já estavam lhe cobrando mentalmente a idéia de carne bem tenra, a velhice provocaria mesmo isso?
E, naquele exato momento, compenetrado em sua nova expedição, ele não viu que não era o único caçador no mundo.
Enquanto ele escrevia a segunda letra falsa na areia, a sombra agiu muito rápido. Depois que a pedra atingiu o crânio daquele caçador, uma, duas, três vezes.
Não era mais uma criança de onze anos.
Após treinamento com seu único amante, seu melhor amigo, daquele exército cartaginês, após muitos marujos e muitos navios, após muitas desgraças por um prato de comida, ela ficou ouvindo o silêncio daqueles dois corpos.
Ninguém jamais lhe ensinou sobre pensar firmemente em outra coisa, mas ela pensava, enquanto aqueles marinheiros miseráveis agiam, ela se concentrava no fato de que aquele dia chegaria e tudo unicamente era suportado por aquele dia.
A criança de onze anos viu sua mãe cair no chão de azulejo cerâmico azul. Não, ninguém queria se contaminar com aquela tragédia. E afinal se descobriu sem parentes. Decidiu que eles eram todos estranhos, não, menos do que estranhos, e um estranho valeria mais do que eles. Ela era filha de um soldado morto em batalha, ela não iria seguir com sua vida, casar, ter filhos, fatiar lentamente sua dignidade. Ela não iria concordar com o criminoso. A covardia para ela não era uma opção.
Ela olhava para aqueles dois corpos. E não teve disposição para avaliar que ele só não percebeu sua chegada porque um assassino só pode ser alcançado por suas próprias qualidades.
Sem sentir, sem raciocinar, ela apenas seqüenciou as imagens de tudo o que havia visto até aquele momento. Cidades bem planejadas, com ruas, calçadas, sarjetas, lojas de comércio e casas luxuosas. Mais marinheiros, muitos marinheiros, seus fedores, sua crueldade. Excelentes professores.
Cnossos, Faistos, Mália e Tilisso.
Nunca mais voltaria a ver essas cidades.
Não fazia mais parte de lugar algum.
Sabia pela Deusa-Mãe que todo crime teria seu confronto.
Eles voltariam a se ver. Seria bem sério. Que fosse.
Olhou para ele uma última vez e andou, passo após passo.
E o sol.
E ela ouvindo as ondas em procissão, como os dias.
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